sexta-feira, 16 de maio de 2008

"Não é nada pessoal..."

Quem usa essa frase aí de cima faz uso na seqüência de alguma adversativa: mas, contudo, no entanto. Ou então, inverte a ordem. Dá a má notícia primeiro e a sacramenta com a fatídica como uma pá de cal na testa do seu interlocutor, entre os olhos.
Não poderia estar mentindo de forma mais vil, o dissimulado. Tudo o que nos diz respeito, para o bem e para o mal, é pessoal.
É uma praga da nossa era essa segmentação. A divisão do trabalho enraizou-se tão profundamente no nosso cotidiano que tomou de roldão nossa própria visão de mundo. É um caso clássico de um fenômeno eminentemente econômico enveredando pela ideologia e dando forma ao espírito da época.
Sob a proteção da pretensa divisão das esferas da vida pode-se ser um canalha mau-caráter, ladravaz ordinário, no trabalho ou na vida pública e em casa e entre amigos ser um sujeito exemplar, de boníssimo coração. Ou ao contrário, em família ser violento e cruel, a encarnação mal, e para os vizinhos ser o bom cidadão como o velhinho simpático e pacífico que seviciou a filha e a manteve com seus filhos-netos em cárcere privado no porão.
Somos tudo o que somos onde quer que estivermos. O executivo arrojado pode ser até que goste de sossego e tenha medo de avião. Mas ser arrojado e ter medo de avião não são características assim tão incompatíveis que seja necessário compartimentalizar a vida de cada um para poder entender que coexistam na mesma pessoa.
O executivo arrojado continua sendo o mesmo sujeito enquanto exerce (ou deixa de fazê-lo!) seu papel de pai tranqüilo e contemporizador. E não deixa de ter medo de avião nas férias da família na Disney e/ou na viagem de negócios para Nova Iorque. Ele, como todo mundo, é tudo ao mesmo tempo agora a todo momento. E é exatamente por isso que a vida é difícil, o mundo e as pessoas são complexas.
Se, por ossos do ofício, é necessário contrariar interesses e por vezes fazer opções que ferem ou prejudicam alguém não me venha com esse papo desonesto de que não é uma questão pessoal. Prejudicar esse alguém é sua função e fazê-lo é uma ação pessoal e intransferível. Você é a pessoa que o faz e ele ou ela é a vítima da sua ação. Exerça a má ação e admita que o fez sendo executivo, pai e medroso. Ou discorde e se recuse a fazê-lo e arque com as conseqüências como executivo, como pai e, principalmente, como cagão.
Consciências pesadas encontram conforto na compartimentação da vida. Não é nada pessoal. Até gosto de você. Mas sabe como é... Sinto muito em lhe afirmar: É pessoal, sim. O que quer que sua vítima do momento represente, quem quer que ela seja, como trabalhador, como filho, como pai, como irmão ou como pescador de fim-de-semana não deixará de sê-lo porque está na mesa do bar diante de um chope e não na estação de trabalho em frente a um computador.
Vai nessa. Mas siga adiante sozinho com sua consciência pesada e aliviando-se do peso dos seus atos com a fé cega de que não é pessoal. Mas no caminho que está trilhando um dia ainda vai encontrar um portal sobre o qual lê-se: "Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate". Ou então, antes disso, pode se deparar com uma das suas vítimas, com uma pá de cal na mão e um sorriso no rosto.